Agosto Lilás: a violência doméstica e familiar

 Maria da Penha hoje vive em cadeira de rodas: “Aqui em Fortaleza ocorreu o nascimento da minha segunda filha. E a partir desse momento a pessoa que eu conhecia como
 
Por Pascoal Zani, psicólogo. 

Agosto Lilás: a violência doméstica e familiar
 
Maria da Penha hoje vive em cadeira de rodas: “Aqui em Fortaleza ocorreu o nascimento da minha segunda filha. E a partir desse momento a pessoa que eu conhecia como companheiro mudou totalmente a sua personalidade, a sua maneira de ser. Foi uma pessoa totalmente... tornou-se intolerante, agressiva. E eu não sabia mais o que fazer para ter aquela pessoa que eu conheci novamente ao meu lado, né?!” (TEDxFortaleza - Maria da Penha - Uma história de vida!)

Seu relacionamento conjugal era considerado “normal” por ela mesma. A violência doméstica começou como “psicológica” e depois passou a física, com tentativas de assassinato. A Lei de 2006, que leva seu nome, foi um divisor de águas na proteção à mulher.

A cor lilás, considerada intermediária entre o azul e o rosa, significa a luta por igualdade entre homens e mulheres. Por isso sua escolha para a campanha contra a violência doméstica e familiar, que acontece em Agosto de cada ano.

Como identificar comportamentos do agressor e da vítima

A psicóloga norte-americana Lenore Walker (www.drlenoreewalker.com) afirma que a violência se dá em ciclos que envolvem 03 (três) fases. A cada novo série aumenta a intensidade da agressão:

    Evolução da tensão

    Explosão / incidente de agressão / ato agressivo

    Lua de mel / arrependimento / comportamento carinhoso / reaproximação.

O funcionamento deste ciclo dificulta (não impossibilita) que a vítima se identifique como tal. O roteiro manipulativo começa na tensão, fomentando relacionamento passivo-agressivo ou agressivo. Passa por surtos de agressão seguidos de um período de calmaria. Por isso é comum a vítima negar ou estar confusa, não ter a certeza de que está vivendo a violência doméstica. Ela não vê necessidade de buscar ajuda nem denunciar, pois o que é um problema em certo período, depois parece não ser mais, reacendendo a esperança alívio e estabilidade. Esse entendimento só muda na medida em que agressão se intensifica.

Fase I: Evolução da tensão (pensamento, emoção e comportamento de vítima e abusador):

    Agressor: mostra-se tenso e irritado; faz ameaças, xinga, ofende, humilha; às vezes tem comportamento destrutivo e acessos de agressividade, que podem se intensificar em caso de uso de álcool ou drogas, por exemplo;

    Vítima: fica surpresa e tenta negar que esteja sendo vítima de violência; sente-se culpada pelo comportamento do outro ou o tolera, buscando justificativas como alcoolismo, cansaço, questões mentais ou econômicas; evita qualquer palavra ou gesto que possa provocá-lo; reprime a raiva de estar sendo desrespeitada, nutrindo e aumentando medo, angústia e tristeza, dentre outras emoções; vive preocupada, precisa estar sempre atenta, não pode relaxar; esconde os fatos de familiares e amigos;

Infelizmente a cultura confunde masculinidade com machismo, dando às agressões um tom de normalidade. Em alguns casos o abusador é até benquisto na sociedade, no trabalho e com os amigos, mas é agressivo no ambiente familiar. Em outros a sua agressividade já comprometeu todos os seus laços.

Nessa fase é conveniente examinar como a família se relaciona, se de modo assertivo, em que todos se expressam e se posicionam claramente, com empatia, se ouvem e se respeitam; ou de forma passivo-agressiva ou agressiva. Nesta última possibilidade há constante hipervigilância e ansiedade, fazendo evoluir a tensão entre as pessoas, caracterizando o lar agressivo.

Fase II: Explosão / ato agressivo (pensamento, emoção e comportamento de vítima e abusador):

    Agressor: sua dificuldade de autocontrole gera um ou mais comportamentos violentos, de ordem física, psicológica, sexual, moral ou patrimonial; pode ocorrer dano grave ou feminicídio;

    Vítima: fica em choque, paralisada, não acredita ter forças para reagir; sente medo, confusão, dor, ansiedade, perda de energia, dificuldades de sono e de metabolismo; pode ocorrer agravamento de depressão ou suicídio;

Dois fatores são determinantes para que a tensão nos relacionamentos evolua ao ato de violência: a falta de regulação emocional e a dificuldade de controle de impulsos do agressor. São conteúdos mentais como: se os pensamentos que geram as emoções têm ou não evidências de realidade, se a intensidade de reação às emoções é muito grande e tempestiva, se se sente ofendido com facilidade, se reage tempestiva e agressivamente, por palavras ou gestos.

Fase III: Lua de Mel / Arrependimento / Reaproximação (pensamento, emoção e comportamento de vítima e abusador):

  Agressor: diz-se arrependido e passa um período mais carinhoso, amável e atencioso, favorecendo reconciliação ou impedindo rompimento; depois, aos poucos, volta à fase I, recomeçando o ciclo;

 Vítima: a princípio feliz e confiante, acreditando na mudança, valorizando os bons momentos já vividos; não vê necessidade de romper ou então aceita e busca se reconciliar; conforme o agressor volta ao estado de tensão e irritação, ela reacende o medo, a confusão mental, a culpa e a ilusão, voltando a reagir como na fase I;

É comum ouvir em consultório: “é por causa do Home Office”, “eu tenho esperança de que ele volte a ser como era antes”, “é porque ele bebe”, “não consigo sentir raiva dele”, “foi só uma vez”, “é só quando ele usa drogas”, “ele é meio impulsivo, é o jeito dele”, “está nervoso porque perdeu o emprego”, “ele fez isso, mas ele me ama”, “é assim mesmo”, “a culpa é minha”

O comportamento carinhoso e às vezes até submisso do agressor nesta fase facilita que a vítima romantize até as agressões sofridas, vivendo em devaneios com o “príncipe encantado” que parece existir em alguns momentos. Enquanto isso, deixa de enxergar a realidade dos maus tratos e do desrespeito que recebe na maior parte do tempo, acreditando que “ele mudou” e que a partir dali viverão “felizes para sempre”.

“A melhor maneira para manter alguém prisioneiro é tendo certeza de que ele nunca saiba que está na prisão”. (Fiódor Dostoiévski)

Violência doméstica se caracteriza apenas por agressão física ou assassinato?

A Lei Maria da Penha detalha cinco tipos de violência:

    Física

Exemplos: chute, tapa, espancamento, arremesso de objetos, estrangulamento, lesão, tortura, queimadura, feminicídio (assassinato)

    Sexual

Exemplos: sexo forçado no casamento ou fora dele, obrigado a atos que causam dor ou repulsa, forçado com outras pessoas, em troca de valores, com impedimento uso de método contraceptivo, estupro, forçando gravidez ou aborto

    Psicológica

Exemplos: humilhação, sarcasmo, grosseria, invalidação, manipulação, proibição que leve ao isolamento, gerar dúvida sobre a sanidade, ameaça, perseguição contumaz, insulto, chantagem, piada constrangedora, culpar a mulher pelos problemas e pela própria agressão sofrida, ciúme exagerado

    Patrimonial

Exemplos: deixar de pagar pensão alimentícia, destruição de documentos, de objetos pessoais e profissionais, controle financeiro, estelionato, furto, privação de bens móveis ou imóveis, direitos ou recursos econômicos

    Moral

Exemplos: calúnia, difamação, xingamento, acusação vã de traição, traição, crítica mentirosa, exposição da vida íntima, desvalorização ou restrição quanto ao modo de vestir ou de se aparentar (ex.: tatuagem, corte de cabelo, controle de peso, estética)

Embora na lei os itens sejam aplicáveis aos enquadramentos acima, é importante citar também outro tipo de violência:

    Virtual

Exemplos: compartilhar imagem íntima sem autorização, fazer comentário depreciativos, espionar e perseguir nas redes sociais (stalkear)

Violência psicológica: quando a língua fere mais que a mão

Em 2021 a legislação brasileira passou a tipificar o crime de violência psicológica, aumentando a proteção da vítima ao facilitar a condenação do agressor:

“Causar dano emocional à mulher que a prejudique e perturbe seu pleno desenvolvimento ou que vise a degradar ou a controlar suas ações, comportamentos, crenças e decisões, mediante ameaça, constrangimento, humilhação, manipulação, isolamento, chantagem, ridicularização, limitação do direito de ir e vir ou qualquer outro meio que cause prejuízo à sua saúde psicológica e autodeterminação. Pena - reclusão, de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, e multa, se a conduta não constitui crime mais grave."

Do ponto de vista de saúde mental é fácil concluir que a agressão pode fomentar estados ou transtornos de ansiedade e depressão, por exemplo, podendo fazer chegar ao suicídio.

A sutil diferença entre a emoção de raiva e a agressividade

"A raiva, para as pessoas, é como o combustível para o automóvel. Ela nos dá energia para seguir em frente e chegar a um lugar melhor. Sem ela, não teríamos motivação para enfrentar os desafios. A raiva é uma energia que nos impele a definir o que é justo e o que não é.” (Arun Gandhi no livro “A virtude da raiva”, transcrevendo o que ouviu de seu avô, o pacifista Mahatma Gandhi)

Marshall Rosenberg, criador da CNV – Comunicação Não-violenta, complementa: “A raiva não é o problema. O problema é o pensamento que a cria.”

As emoções são forças naturais de todos. Elas tem funções de auxiliar as pessoas na sobrevivência e na comunicação. Renato Caminha, no livro “Emocionário – Diário das Emoções”, explica para quê serve, quais consequências do excesso e da falta do uso da raiva:

Sobre a função, ele descreve: “existe com o objetivo de nos defender contra quem nos ataca, nos desrespeita, viola limites e nos difama... quando conseguimos mostrar nossa raiva de modo adequado, ou seja, assertivo, acabamos nos sentindo melhor e com mais autoestima e autonomia.”

Há um entendimento comum de que a agressividade é sinônimo de raiva, mas é preciso distinguir, pois ela pode ser considerada uma reação distorcida e exagerada da raiva, mas não é ela. A agressão nasce do pensamento infundado e uso superdimensionado da emoção. Caminha continua: “A raiva em excesso nos deixa descontrolados e explosivos, agressivos e hostis em relação às pessoas com quem convivemos” ... passando a “atacar a tudo e a todos como se fossem inimigos ou responsáveis pelos seus problemas”.

E o mesmo autor ainda descreve o que acontece quando a pessoa reprime a raiva, deixa de utilizá-la, como é o caso de muitas vítimas de violência doméstica, não por sua culpa, mas por estarem dominadas pelo medo ou pela negação da agressão que está vivendo: “Não aceitar ou não demonstrar a raiva acaba nos deixando fracos nas nossas relações com as outras pessoas. É quase como se aceitássemos tudo que os outros possam fazer de desagradável e mau contra nós. Assim ficamos fracos socialmente, nos tornamos pessoas sem autoestima, sem opinião sobre as coisas, sem iniciativa e sem condições de se impor.”

Entendida desta forma, o fato da raiva ser vista socialmente como vilã é algo que beneficia o agressor, que faz uso indevido dessa emoção, desde nutrir pensamentos pouco aderentes à realidade até exagerar na intensidade e na impulsividade de seu comportamento (palavras ou atos que ferem).

Por outro lado, a vítima, sem exagerar e sem reprimir, pode utilizá-la como uma força natural para recuperar o senso de Justiça, agir civilizadamente na busca de suprir sua necessidade de paz e de estabilidade emocional, de se respeitar e se fazer respeitada, recuperar sua dignidade e, enfim, sua Vida, seu direito de viver com bem-estar.

A violência contra os filhos

A violência doméstica não se restringe à mulher. É também familiar. A criança capta tudo o que acontece no ambiente, formando suas crenças e seus modos de adaptação. Segundo a Terapia Cognitivo-comportamental, é na infância e na adolescência que estão sendo formadas as crenças, os modos de pensar que nortearão sua Vida, ao menos até que consiga alterá-las, desconstruí-las ou reforçá-las, se negativas ou positivas. Então, a convivência do agressor com ela, mesmo que não agredida diretamente, afeta todo seu futuro.

Submeter a criança ao lar agressivo estimula a perpetuação da violência doméstica, pois é possível que ela aprenda por modelagem a ser também agressiva ou, pela fragilidade de não ter supridas suas necessidades emocionais básicas, se torne vítima, no presente ou no futuro.

A assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar

A advogada Dra Geovana Souza Soares, OAB/MG 202274, pós graduanda em Advocacia Feminista e Direitos da Mulher, que é palestrante na área e está estruturando o “Projeto Amélia Livre” para apoiar vítima quanto à dependência socioeconômica, ressalta:

“Para que seja possível prestar auxílio à mulher vítima de violência doméstica, é preciso conhecer os direitos e garantias que ela possui, informando e orientando, para que ela não se sinta desamparada no processo de denúncia ou empoderamento em relação ao agressor.

Neste sentido, a Lei Maria da Penha, em seu art. 9º, prevê que a assistência à mulher em situação de violência doméstica e familiar será prestada de forma articulada, conforme parâmetros da Assistência Social, do Sistema Único de Saúde, do Sistema Único de Segurança Pública, e demais políticas públicas de proteção.

Ou seja, a pessoa em situação de violência não está socorrida apenas pelo direito penal. A Lei Maria NÃO É SOBRE AGRESSOR, ELA É SOBRE A OFENDIDA. O dispositivo prevê punições ao agressor, mas, de maneira primordial, apresenta o acolhimento e cuidado com a vítima.

Existem medidas protetivas de urgência à ofendida e outros cuidados que podem e DEVEM ser tomadas para garantir sua segurança. Podem ser citados Direitos e Providências previstos em Lei, como: a) Direito à inclusão em cadastro de programas de assistência social; b) Manutenção obrigatória do vínculo empregatício por até 6 meses; c) garantia do acesso prioritário à remoção quando servidor a pública, integrante da administração direta ou indireta; d) Acesso aos serviços de contracepção de emergência e profilaxia das Doenças Sexualmente Transmissíveis (DST) e da Síndrome da Imunodeficiência Adquirida (AIDS), além de demais procedimentos médicos necessários e cabíveis, nos casos de violência sexual.

Assim, o auxílio perpassa por intervenções diretas, mas, principalmente, por um apoio contínuo e multifacetado. Está na cobrança de Políticas Públicas de combate à DESIGUALDADE DE GÊNERO, no diálogo, no debate e na desconstrução dos padrões de comportamento que acarretam à violência doméstica e familiar.”

O tratamento de psicoterapia para vítima e abusador

O agressor pode até ser forte fisicamente, mas psicologicamente não é. Ao contrário, alguém equilibrado emocionalmente não desrespeita o outro, minimamente que seja. Ponto. Ponto final. Então, quando busca ajuda profissional, ele está de fato enfrentando seus medos e protegendo a si e aos que ama, bem como evitando possíveis punições legais. O tratamento de psicoterapia para o abusador tem os objetivos de aumentar seu nível de consciência, treinar a regulação emocional e o controle de impulsos, aprender a reconhecer e respeitar os limites do outro, identificar e tratar transtornos e vícios para eliminar ou reduzir a chance de agressão, o que é altamente benéfico para ele, para a vítima e demais membros da família.

Para a vítima, o serviço de psicologia busca fortalecer sua autoestima, identidade e autonomia, fortalecendo-a para enfrentar seus desafios. Ela busca aprender a dizer não, a expressar seus desejos, emoções e necessidades e, mais que tudo, a se fazer respeitada. Abusadores tem dificuldade de violentar pessoas mais empoderadas, que lidam melhor com seus medos e que sabem exigir o respeito que ela (e seus filhos) merecem.

Em vários casos há necessidade de acompanhamento psiquiátrico também, para as vítimas (mulher e filhos) e também para o abusador.

Identificando a violência e buscando ajuda

Conhecer o ciclo e os tipos de violência doméstica auxilia a vítima a identificar a situação que está vivendo. É o primeiro passo e é muito importante.

O segundo passo, essencial, é falar, buscar ajuda. Às vezes a pessoa prefere sofrer sozinha para não fazer seus amados sofrerem, enquanto o que mais as pessoas queridas querem é ajudar a diminuir sua dor. O medo intenso e constante induz a se calar. E o agressor se nutre do medo da vítima, aumentando e mantendo a escravização. Conversar e contar detalhes a alguma pessoa de sua confiança ou a um profissional é a melhor forma de “respirar” e poder pensar de modo mais consciente sobre a situação e possíveis soluções.

Instituições como o Instituto Maria da Penha (www.institutomariadapenha.org.br) e outras oferecem apoio para que as vítimas busquem alternativas para resolver o problema da violência doméstica.

A Campanha sinal vermelho (www.cnj.jus.br/programas-e-acoes/violencia-contra-a-mulher/campanha-sinal-vermelho/) organiza modos de buscar ajuda, enquanto a Central de Atendimento à Mulher, no fone 180 (www.gov.br/mdh/pt-br/assuntos/denuncie-violencia-contra-a-mulher/o-que-e-central-de-atendimento-a-mulher-2013-ligue-180), também recebe pedidos. As Defensorias Públicas e as Prefeituras também mantêm serviços de orientação e ajuda a vítimas.

Serviços de Psicologia como o Projeto Coletivamente (www.facebook.com/psi.coletivamente), que conta com 42 psicólogos, também podem ser acionados para tratamento psicoterápico do abusador e da vítima, por pessoas que de fato necessitem de atendimento com custos de valor social.

Ainda que a violência doméstica envolva fatores socioeconômicos, culturais, religiosos, familiares e outros, romper com a dependência emocional em relação ao agressor dá à vítima um alívio importante e a coloca em condições de buscar novas soluções para a realidade que vive. A mulher que se liberta, liberta também as gerações futuras.
 
Publicado em 25/08/2021
    
 

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